sábado, 4 de abril de 2015

A “NOÇÃO DE PESSOA” E A ETNOGRAFIA


Desde quando Hobbes, em seu Leviatã, desenvolve a noção de sujeito sob a forma da categoria de “pessoa”, seja ela a personagem com seu papel em dramas sagrados – cosmológicos – ou quando no caso do uso de máscaras, seja quando define a pessoa jurídica e a pessoa moral, a entidade metafisica ligadas a substâncias e modos, ou em relação à valores, pode-se pensar sociologicamente em uma noção de pessoa, sujeito, e então nas suas visões de indivíduos no contexto das relações sociais.

Na modernidade, Geertz discute a construção da noção de pessoa a partir da etnografia, esta que representa o fazer etnográfico por meio de uma ciência interpretativa da antropologia, ativa na análise de símbolos e a utilização da “descrição densa” no recurso busca por profundidade na procura dos significados dos fenômenos sociais.

O conceito de Cultura, marcado pelo entendimento weberiano de uma teia de significados, estabelece a “ação social dotada de sentido” superando a aparência da realidade e suas contradições, no exercício de compreensão do real como um texto onde se deve operar o desvelamento e decifração do simbólico como ponto chave do mundo moderno – mundo suprassensível da cultura e o mundo inteligível das estruturas socioculturais.


Enquanto James Clifford pontua o debate acerca da linguagem etnográfica observada entre os pontos de vista da literatura e da ciência antropológica. O jogo entre interpretação e descrição leva à compreensão e explicação do real em relação ao simbólico. Enfim, a Antropologia sobreviverá e se tornará cada vez mais necessária enquanto se aprofundam as questões d’ alteridade – abismos entre nós e o “Outro”.

terça-feira, 31 de março de 2015

Fernando Baez e a Conquista da América indígena.



"Entraban los españoles en los poblados y no dejaban niños ni viejos ni mujeres preñadas que no desbarrigaran e hicieran pedazos. Hacían apuestas sobre quién de una cuchillada abría un indio por medio o le cortaba la cabeza de un tajo. Arrancaban a las criaturitas del pecho de sus madres y las lanzaban contra las piedras. A los hombres les cortaban las manos. A otros los amarraban con paja seca y los quemaban vivos. Y les clavaban una estaca en la boca para que no se oyeran los gritos. Para mantener a los perros amaestrados en matar, traían muchos indios en cadenas y los mordían y los destrozaban y tenían carnicería pública de carne humana... Yo soy testigo de todo esto y de otras maneras de crueldad nunca vistas ni oídas".

"Ellos construyeron una picota lo suficientemente larga como para que los pies pudieran tocar el piso y de esta forma prevenir la estrangulación, y así, los colgaban de a trece indios por vez en honor de Nuestro Salvador Jesucristo y los doce Apóstoles... Después, paja era envuelta alrededor de los cuerpos destrozados y quemados vivos."

"Ellos [los cristianos] le cortaban las manos a los indios y se las dejaban colgando de un pedacito de piel... [y] ellos probaban sus espadas y su fuerza de hombre sobre los indios cautivos sobre quienes hacían apuestas para ver quien podía cortarles la cabeza o partirlos en dos de un tajo.

(Fray Bartolomé de Las Casas - Brevísima Relación de la Destrucción de Las Indias)

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Desde os séculos da Conquista da América do Sul no século XVI, a tomada do território  para a exploração de riquezas culminou no desaparecimento de inúmeros grupos sociais, na extinção de culturas em suas formas material e simbólica além de um apagamento dos sentidos da  memoria dos povos originários do continente ameríndio. No reconhecimento de um genocídio, de um etnocídio e um memorícidio na história da formação das sociedades do Novo Mundo, o uso do trabalho escravo ou o assassínio ante a resistência armada contra os dominadores, formam os métodos como se perpetuam tais fenômenos, outras vezes definidos como Modernidade, Colonização ou Capitalismo.

A expropriação da terra dos indígenas, alertou as estruturas mentais dos nativos negando-os “o direito à terra que já ocupavam e seus recursos naturais, o direito ao uso de sua própria língua e o direito de fazer sua história coletiva com autodeterminação”(BAEZ, 2010, p. 133). O desenraizamento cultural levou a decadência dos idiomas, o preconceito contra a tradição, enfim, a negação da história. Assim define-se o etnocídio pela destruição sistemática dos usos e costumes dos modos de ser, de cosmovisão e pensamento de diversos grupos sociais. O memorícidio versa sobre a liquidação do patrimônio tangível e intangível, minando as formas de resistência a partir do passado baseadas em deuses, pirâmides, bens simbólicos.

Ao constatar que “mais de 60% da arte latino-americana que sobreviveram estão fora das suas respectivas regiões”, Baez indica o quanto os índios são os guardiões das reservas energéticas e, ainda mais, que  as ditaduras do século 20 na América do Sul, operaram de modo a adulterar a memória histórica dos seus países.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Comunidade quilombola e pesqueira sofre massacre na Bahia


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17 de março de 2015 (09:44)

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Assunto: Ajude a denunciar: Comunidade quilombola e pesqueira sofre massacre na Bahia

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"Me manifesto em repúdio ao que que vem acontecendo no município de São Francisco do Conde, na Bahia. Desde 2009, a comunidade pesqueira-quilombola Porto Dom João vem sofrendo diversas violências físicas e psicológicas, por parte da prefeitura e fazendeiros locais interessados em expulsar a comunidade para implantar empreendimentos turísticos no local. Inclusive já houve tentativa de homicídio contra pescadores dentro dos manguezais  e recentemente a prefeitura entrou com ação judicial para anular a certidão quilombola e o processo de regularização fundiária do INCRA. Repudiamos também a posição racista e autoritária do Juiz Evandro Reimão que decretou de imediato liminar contra a comunidade desconsiderando a constituição federal e a convenção 169 da OIT. É inadmissível que o poder publico seja conivente com essa situação clara de racismo institucional. Peço intervenção pela defesa da vida e dignidade da comunidade. Não se pode violar os direitos humanos dessa forma. Me solidarizo e aguardo ações urgentes dos senhores e senhoras que possam acabar com toda essa violência contra a comunidade e ao mesmo tempo assegurar imediata efetivação dos seus direitos conforme determina nossa constituição federal. "
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Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais da Bahia (MPP BA) denuncia esquema racista contra a comunidade Quilombo Porto Dom João, localizada no município de São Francisco do Conde. Lideranças são ameaçadas de morte por fazendeiros locais com o apoio do poder público. O caso é grave e o MPP pede ampla divulgação e apoio. Confira o manifesto e saiba como ajudar a denunciar:

SOMOS TODOS QUILOMBO PORTO DE DOM JOÃO!

O Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) vem a público denunciar o esquema racista envolvendo a prefeitura de São Francisco do Conde, fazendeiros locais, a Federação Automobilística da Bahia (FAB) e a Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado da Bahia (SETRE) contra a comunidade remanescente de quilombo Porto de Dom João, localizada as margens da BA 522, no município de São Francisco do Conde.

Desde 2009, esta comunidade pesqueira quilombola tem sido alvo de inúmeras ações de violência física e psicológica, criminalização das lideranças, tentativas de homicídios – pescadores alvejados dentro dos manguezais, derrubadas de casas, difamações, discriminações diversas e negação de políticas públicas com propósito de eliminar a comunidade e prevalecer os interesses escusos da prefeitura e de fazendeiros. Por fim, tentam expulsar a comunidade sob o argumento falacioso de que a mesma vem causando crimes ambientais no território em que ocupa por gerações.

Em novembro de 2014, o prefeito Evandro Almeida acionou a justiça federal com o objetivo de anular a certidão quilombola, a paralisação do processo de regularização fundiária iniciada pelo INCRA e a criminalização da comunidade por crimes ambientais.  Essa ação foi imediatamente julgada pelo tendencioso, autoritário e racista Juiz Evandro Reimão dos Reis – o mesmo carrasco do quilombo Rio dos Macacos – que ordenou a imediata suspensão do processo em curso de regularização do território quilombola da comunidade, direitos assegurados em nossa Constituição Federal e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

No dia 02/03/2015 fomos surpreendidos com a informação divulgada no site da Federação de Automobilismo da Bahia de que a prefeitura havia desapropriado uma área da fazenda D. João, pagando mais de 3 milhões de reais para o fazendeiro e repassado para a FAB construir uma mega pista de automobilismo nas proximidades da comunidade quilombola D. João. Essa informação revela o esquema vergonhoso  envolvendo a prefeitura local, empreiteiras, fazendeiros e a FAB sob a tutela de atos irresponsáveis do poder judiciário.

Revela ainda, que todos os atos de violência e negação de direitos contra a comunidade tem um claro propósito racista-genocida, ou seja, para estes históricos algozes do povo negro quilombola do recôncavo baiano, esta comunidade deveria desaparecer do mapa a fim de assegurar a imposição dos seus interesses, caracterizando de maneira muito acintosa e cruel o racismo institucional e a conivência de gestores públicos e do judiciário.

Desta forma solicitamos que sejam enviados protestos e manifestações de apoio a resistência da comunidade para o MPF, SEPPIR, FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, SEPROMI, Prefeitura de São Francisco do Conde, Governo do Estado da Bahia, SETRE e demais autoridades a fim de que sejam investigadas as denúncias aqui formuladas, bem como que se proceda a urgente efetivação dos direitos constitucionais da comunidade remanescente de quilombo porto de Dom João.
Ajude a denunciar!

Envie protestos e manifestações para os seguintes e-mails:

Ministério Público Federal – MPF
Procuradora Deborah Duprat
deborah@pgr.mpf.gov.br

Procurador Edson Abdon:
prba-sac@mpf.mp.br

Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR
Ministra Nilma Lino Gomes:
nilma.gomes@seppir.gov.br

Fundação Cultural Palmares
Presidente José Hilton Almeida:
agenda.presidente@palmares.gov.br

Procuradora Dora Lucia de Lima:
pf.fcp@palmares.gov.br

Governadoria do Estado da Bahia
Governador Rui Costa
agenda@governadoria.ba.gov.br

Secretaria da Casa Civil da Bahia
gabinete.secretario@casacivil.ba.gov.br

Secretaria de Promoção da Igualdade – SEPROMI
Secretária Vera Barbosa:
vera.barbosa@sepromi.ba.gov.br
sepromi@sepromi.ba.gov.br

Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e Esporte
Secretário Álvaro Gomes
gabinete@setre.ba.gov.br

Prefeitura Municipal de São Francisco do Conde
gabinete.segab@pmsfc.ba.gov.br
pmsfc.informa@gmail.com

sexta-feira, 13 de março de 2015

Em busca de um novo começo




O filme Apocalypto (2006), lido por uma perspectiva antropológica apresenta a tentativa de reconstrução da situação dos regimes de sociabilidade na América pré-hispânica, como a ideia de coletivo e liderança, além dos conflitos inter-étnicos entre diversos grupos. São representados no filme processos de expansão, invasão, domínio, conquista, prisão e feitura de escravos de um segmento da civilização Maia, em regime de contraste com outros clãs, hordas de caçadores e coletores que vivem no interior da floresta.

Um cortejo de indígenas em busca de “um novo começo” ilustra o que pode ter sido os estímulos para as ideias de salvação e “terra sem mal” que tanto descreveu Pierre Clastre, sobre os Mai e os karaíba, além da crítica ao “um” – ou seja, ao Estado. A diferença de poder durante os conflitos podiam decorrer do apuro e dominação com as ferramentas bem como as técnicas e estratégias de combate.

As práticas de reunião com anciãos, antepassados e seus costumes ancestrais – o xamanismo, o totemismo e o sacrifício precedem a relação sócio-cosmológica da morte com a floresta, além do diálogo da mitologia ameríndia com a natureza, em especial os animais com o Jaguar, por exemplo. No momento de conflito: desespero, outra ordem é erigida, suspensão da norma, violações éticas e morais de um povo, violência física. A partir do contato–atrito em contraste é preciso aprender com as crianças a refazer o caminho e reforçar a consciência das necessidades do coletivo num regime de sobrevivência em condições adversas e socialidades desestruturadas.

O que nos deixa dizer, sobretudo, que ali já há história já, e se pode perceber o discurso, a ideologia na relação entre o líder, o povo e os deuses. Do ponto de vista anímico o Jaguar é um símbolo com eficácia simbólica bem relevante para os processos de identificação na mediação entre o realismo objetivo da história material e o simbolismo mítico do subjetivismo cosmológico.

“A alma dela está a sua espera aos pés da árvore da vida”

Haviam os leprosos, os que possuíam a doença e sofriam da rejeição coletiva, do isolamento e ao ostracismo. O medo, a hora sagrada, da escuridão do dia, que põe fim do céu e faz desaparecer a Terra e leva o fim ao mundo ameríndio. A profecia cumpre a função discursiva, narrativa dos jogos de poder através de uma semiologia entre representações e rituais.

A criação do mito se faz a partir da invenção e de comunhão entre homem e natureza numa temporalidade marcada pela diferenciação espacial/geográfica, como se pode observar na construção da naturalização da sociedade. Fica-nos a pergunta: “O que são eles?” e uma primeira resposta nos traz o filme: “eles trazem homens”.

– Mas se a sociedade não existe e é apenas uma abstração, o que é a civilização?                         – Bandeiras, barcos, tecnologias, cruz, espada, deus? Ou vingança?




quinta-feira, 12 de março de 2015

The voice of shaman, The New York Review Books. Tradução (1ª parte)

Desabamento do Céu, Claudia Andujar entre os Yanomami.
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A voz do xamã¹

A queda do céu (The falling sky),  livro escrito pelo xamã yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, tomou este título de um mito de criação dos yanomami que vivem na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. O mundo primordial foi esmagado por um colapso do céu, lançando com forças estes habitantes para o submundo. A volta do céu anterior transformou a floresta onde ressurgiu o povo yanomami, e onde continua nos dias de hoje. Ele ainda liga a floresta “ao velho céu”. O novo céu foi erguido, realizado no lugar por fundações de metais profundamente colocadas na terra pelo demiurgo Omana (entidade anímica).Ainda o novo céu está sob constantes ataques pelas forças do caos e o incansável trabalho dos xamãs yanomami com os espíritos aliados, os xapiri, para evitar um novo apocalipse. Um terceiro céu diáfano já espera, no alto, no caso de ocorrer um colapso e o mundo mais uma vez venha a ter um fim.

Em números de aproximadamente de 33.000, os yanomami estão em uma das maiores sociedades indígenas da Amazônia, ocupando um vasto território concentrado na montanha Parima dividindo a Amazônia a partir da bacia de Orinoco. Isolados até o início do século 20, os primeiros contatos regulares com missionários e agentes do governo brasileiro começam entre 1940 e 1960. Estas relações quebraram-se quando ferramentas de metal e outros comércios desejados como bom se dão, bem como uma fatal doença epidêmica.

Nos anos de 1970, o governo brasileiro começa cortando a perna norte da Transamazônica, causando desflorestamento e novo distúrbio para a vida yanomami. A transamazônica e sua construção foi abandonada depois de vários anos, mas uma enorme corrida do ouro nos meados de 1980 infligiu tremendo sofrimento e devastação ecológica. Em 1992, campanhas internacionais através de antropólogos e indígenas e organizações não governamentais resultaram na demarcação de um território contiguo para os yanomami totalizando 192,000 km²(tão grande quanto a Florida) compartilhado entre o Brasil e a Venezuela. Ambos autores deste livro, Kopenawa como porta-voz internacional yanomami e Bruce Albert como cofundador da ONG CCPY (Comissão Pro-Yanomami), foram figuras centrais nesta importante vitória, e ambos permanecem atuando em uma luta contínua contra a mineração e outras ameaças.

A queda do céu é várias coisas. É a autobiografia de Davi Kopenawa, um dos mais proeminentes e eloquentes líderes indígenas brasileiros. É a mais vívida e autêntica descrição do xamanismo filosófico (filosofia xamânica) que eu já li. É também um apaixonado apelo pelos direitos dos povos indígenas e uma mordaz condenação do perigo forjado por missionários, mineradores de ouro e a ganancia dos homens brancos (nhabebe). As notas de rodapé sozinhas abrigam monografias sobre a botânica e a zoologia, mitologia, ritual e história yanomami.


(...)

To be continued

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Para ouvir o canto xamânico de Davi Kopenawa clique aqui.

[1] O xamã Davi Kopenawa da aldeia Yanomami de Demini, resolveu no final dos anos 70 se aproximar da FUNAI ocupando um posto avançado num quartel para o abandono do projeto da estrada Perimetral Norte, através do território Yanomami, no estado de Roraima, Brasil, em abril de 2014; fotografias por Sebastião Salgado: Genesis está no International Center of Photography, New York, até 11 de janeiro de 2015. O Catalogo é editado por Leila Wanick Salgado e publicado por Taschen.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E EMPODERAMENTO: A FACE POLÍTICA DO CONFLITO CULTURAL.




Aspectos como território e patrimônio histórico são elementos definidores de uma cultura em qualquer sociedade. O homem é o universo em que vive e assim toda cultura quando em efetivação de suas potencias compõem a sociedade na qual está contida.

As remoções das comunidades indígenas ou quilombolas, a violência e extermínio de determinados grupos étnicos dessas comunidades revela o sinal de uma consciência política por meio da dimensão territorial. A liberdade, a honra e a paz para esse povos só se dá através da luta, da negociação ou do conflito com a ordem hegemônica representado pelo Estado e o Mercado, na maioria das vezes. Nesse contexto, a Cultura desses povos como expressão de sua identidade, é também por sua vez um instrumento de luta na construção desse processo social de enfrentamento, resistência e emancipação social.

O Brasil esse país difuso é resultado de circunstâncias históricas bem complexas, que por razões óbvias, não posso reduzi-las aqui, mas importa dizer que essa formação histórica e social tão conturbada começa a encontrar seus pontos radicais no esquema  sociológico de suas contradições. As apropriações e inserções ambíguas e por vezes operadas entre o eu (ameríndio) e os outros (europeus e africanos) gerou no sistema social do país formas de classificação e hierarquias contraditórias. A não mediação e a adulteração de regras de sociabilidade destes grupos gerou desigualdades de poder na medida em que a diversidade cultural só se intensificou ao passar do tempo.





segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O sociólogo e a "solidão do porco espinho" – A hermeneutica do autor.




A Sociologia é uma ciência incompleta, uma atividade provisória. Através da recolha de epistemologias dispersas e métodos múltiplos, o sociólogo empreende uma ação intelectual de montador e ao mesmo tempo arquiteto das estruturas sociais com a digna sensibilidade de um organizador dos fenômenos sociais.

A capacidade de articular uma redação da realidade é crucial para apresentar, não raro, uma visão que tende a totalidade ainda que na dimensão objetiva do texto constata-se, por vezes, parcial e insuficiente para comportar as contingências do mundo social. O que faz da obra sociológica um trabalho intelectual, por excelência, e como tal aberto a interpretações denotando assim o poder da autoridade do autor, ou seja, do sociólogo. Uma dicção por vezes fragmentada, o uso de construções por vezes repetitivas, a retomada de certos temas são mostra de como aparecem as contradições inerentes ao pensamento social.

A busca por uma análise integral da sociedade assombra a maior parte dos intelectuais, e não apenas sociólogos, os quais esbarram na estratégia da analise diferencial ou comparada, seja por termos ou temas, campos de estudo ou área de conhecimento. Ao passo que a permanência de aspectos sociais fundantes da era moderna, principalmente do pós-século 19, acompanham boa parte destes estudos e reflexões que se preocupam com as mudanças operadas com a soberania da racionalidade – instrumental e administrativa – e da técnica no mundo que vivemos.

Interessa-me o debate que recai sobre as intenções do sociólogo enquanto um autor. A experiência territorial em uma nova localidade, a influência de outros intelectuais e suas obras sobre seu próprio pensamento influenciam assim no tratamento da problemática em desenvolvimento. Considero o exílio como ponto importante e diferencial na produção do conhecimento sociológico, juntamente com as bibliografias e a biblioteca enquanto arsenal, mas que ao mesmo tempo não esgotam a atividade empírica.

Nesse sentido, pensando a sociologia contemporânea enquanto “contracultura da modernidade”, não se pode negar um caráter duplex na atividade intelectual sociológica. O sociólogo, ao viver o estado da solidão do porco espinho, exige a emergência de uma epistemologia dos pontos de vista, uma certa espécie de perspectivismo[1]. A lógica posta, a partir do princípio da identidade de Parmênides – o ser é, o não ser não é – orienta as relações sociais fundamentadas na modernidade: ou seja, o ser – conhecer – que sustenta-se na ontologia do reconhecimento, como posto por Charles Taylor, indica um caminho em direção a  uma epistemologia que leve em conta a universalidade, apresentando assim uma das senão a maior das antinomias da Modernidade onde a experiência social necessita de uma perspectiva relacional, como pode ser observada nas questões que envolvem o tema da identidade multicultural.

Paul Gilroy, ao investigar os desdobramentos da diáspora via Atlântico negro, aponta fenômenos como desterritorialização, desenraizamento, multiterritorialidade. Daí surgem questões como: o hibridismo e a circularidade. Além da diversidade cultural, da desigualdade de poder entre os grupos sociais etnicamente distintos, o recrudescimento de problemas sociais específicos como estes são resultado do enfrentamento (imposição) de um ponto de vista oficial, do colonizador ou hegemônico/dominante frente ao ponto de vista do colonizado ou outsider/marginal. Logo, a configuração do imaginário sociológico contemporâneo não pode prescindir da constatação de que a barbárie está contida na civilização.

Assim, no exercício sociológico de leitura, construção e interpretação das vanguardas anímicas da cultura negra no Nordeste brasileiro, as relações entre a cidadania, cultura e as formas sócio-culturais do maracatu nação e do samba de roda do recôncavo baiano se articulam em torno de uma tensa atividade empírica que permite a emergência de uma narrativa teórica e metodologicamente orientada pelo princípio de uma voz a um só tempo xamanica e científica, crítica e oracular.

A noção de vanguarda aparece aqui diretamente ligada ao sentido de contra-hegemonia política e ideológica ao sistema capitalista; as forças sociais mobilizadas por estas manifestações culturais evocam um poder ancestral e mítico, ao mesmo tempo em que provocam uma série de questionamentos a ordem dominante seja no plano econômico, artístico ou social.

As conexões entre a história do maracatu e do samba de roda são estabelecidas com base em noções como a de patrimônio cultural, que entre outras, colaboram para o debate entre conceitos e categorias de distinção entre a dita cultura popular e seu reconhecimento. Com vistas a uma visão crítica da antropologia, Adam Kuper sugere novas interpretações sobre o debate multiculturalista juntamente com os avanços na teoria social desenvolvidos na Escola de Birmingham de Estudos Culturais.

A música, enquanto elemento artístico oferece uma paisagem estética na qual se pode observar a emancipação de discursos como a liberdade, a descrição do mundo do trabalho, as formas da linguagem destes grupos sociais em análise, bem como identificar questões sociais como o tema da raça e do racismo, num atrelamento entre forma e conteúdo da arte, sempre tão complexa, em diálogo com seu público sempre tão heteróclito.

De tal maneira, assim apresentada a elaboração que se constrói, que a sociologia em face de suas transformações é chamada a redefinição dos pontos chave para a montagem e compreensão da agenda da modernidade. As novas formas de fazer ciências sociais advindas do impacto causado no campo, pelos Estudos Culturais, são sinais, na era moderna, da percuciência da radicalização das contradições sociais, ou seja, de suas próprias contradições.

Com isso é preciso, antes de apresentar uma visão em ciências sociais, considerar que o fazer sociológico foi influenciado pelo impacto que teve a escola de Birmingham no ramo dos estudos da cultura. O que quer dizer que no entendimento do pensamento social se realiza dentro de certos cursos ou programas e orientações de ordens ideológicas, com o aprofundamento da decadência da modernidade surgiram no seio de alguns institutos certa resistência a alguns movimentos de projetos intelectuais pós-1960.

Um profundo esforço para a desconstrução das contradições sociais do presente moderno e para rupturas com as tradições intelectuais encaminharam as Ciências Sociais e as Letras, em especial a Crítica Literária, para um novo conjunto de práticas hermenêuticas capaz de atribuir outros sentidos e significados a velhas teorias.

E reinterpretar a luz de novas questões os persistentes problemas da sociedade moderna marcada pela diversidade cultural e desigualdade das relações de poder entre os diversos grupos étnicos e sociais que compõem as estruturas sociais e se emancipam no panorama sócio-histórico a partir do maio de 68, principalmente, os negros, os gays e as mulheres.

Nesse contexto, categorias como raça ou gênero ganharam destaque e relevância para o trabalho intelectual como chaves de sentido para interpretar situações sociais problemáticas ou em crise. É claro que, enquanto isso acontecia, na sociologia, muitos pensadores produziram obras vultuosas nesse período que visavam, enquanto proposta intelectual, a síntese dos Clássicos. Ao passo que outros se posicionavam bem a direita ou bem a esquerda nos debates políticos acadêmicos (enquanto essas noções representavam alguma coisa no mundo crítico)[2]. Só que outros diferentemente destes, optaram pela ruptura com a reprodução, colocando frente a esta tradição erigida com a ideologia da modernidade o pensamento social que buscou colaborar com a constituição do entendimento desta era conhecida como “trágica”.

É possível que seja ainda mesmo hoje temerário apontar que essa sociologia da síntese, que encontra seu melhor expediente nos trabalhos realizados por Pierre Bourdieu, não passava de uma boa reciclagem ou releituras sofisticadas que por aplicação teórica ou alguma espécie de rigor ao método empregado permitiu uma particular fidelidade epistemológica a algumas das correntes de pensamento que as antecedem.

Nesse momento quero anotar que, a reflexividade, dada como característica intrínseca da Modernidade, por autores como Antony Giddens, pode ser exemplificada sob a forma da estratégia interpretativa da hermenêutica. Recuperando a noção de “excesso de significação” de Paul Ricouer, pode-se dizer que na sociologia contemporânea há um traço ou um suporte de elementos caros a fundação das ciências sociais, em especial, como na noção de “fato social total”, que remete ao conceito de “fato social” de Emile Durkheim, bem como outros exemplos. A teoria social contemporânea é uma co-extensão da sociologia moderna, vista em nossa óptica enquanto uma tradição.

Logo, a noção de originalidade na linguagem sociológica é necessária neste instante histórico para a consideração da questão da autoria e da criação da escritura-científica, onde o moderno precede ao contemporâneo em formas metodológicas e epistemológicas, distinguindo-se em elementos peculiares quanto a teorias e objetos bem como na abordagem para tratá-los.

Concebo ser necessária o desenvolvimento de uma filologia do mundo social, ou seja, uma filologia sociológica, para que se possa observar com acuidade o jogo ente conserva e decadência da modernidade e com se dá a aplicação e aproximação de conceitos e categorias aos quais são atribuídos novos usos(aplicações) bem como sentidos (significados) além de levar em conta estes processos de desenho de uma gramática e semântica dos conceitos como instrumento para identificar o continnun entre: Modernidade, Tradição Sociológica, Sociologia Moderna e Contemporânea.






[1] Ver a aplicação desta inversão de ponto de vista da lógica ocidental para o ponto de vista dos nativos da América amazônica operada pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiro de Castro. (2013)
[2] Durante a Guerra Fria, ser ou não ser a favor da guerra noVietnã, ser comunista ou capitalista, por exemplo.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Leitura, pesquisa e escrita: Tradução, crítica e criação.



Não duvido, que de toda sorte, as crises encontram seus profetas. Com o temperamento intelectual que oscila entre escolas de pensamento, essas famílias espirituais, e as formas de um estilo que possa conjurar maturidade do juízo e sólido conhecimento, dribla-se o vazio dos discursos ou o disfarce da consciência. As habilidades do pensamento para os estudos de línguas e da literatura devem ser evocadas: a leitura (e principalmente a re-leitura) quando houver competência, deve-se o leitor aventurar-se à via da tradução, num misto de técnica, pesquisa e crítica, capaz de alcançar-se uma escrita em estado de criação artística e estética.

No entanto, longe do exibicionismo literário e ainda mais distante dos formalismos puristas e verbalismos estéreis, procura-se evitar aqui os automatismos que deixam os cérebros de molho dispensando o pensar. Em certos momentos da vida acadêmica, passando os primeiros anos de educação universitária é preciso uma “tomada de posição” estética, bem como ler uma obra em outro idioma é escrevê-la novamente. É nessa filosofia da consciência que se faz eclodir um ser dentro do outro, que se manifesta um novo cogito, que não possui limites, a não ser os que estabelece para si mesmo.

Como passaporte entre a estética e a sociedade, a obra de arte, vocifera ao povo, embrutecido pelas atividades produtivas, seu conteúdo intelectual e na sensibilidade artística expressa no símbolo seja o poema, a gravura ou a canção. A constância do trabalho da inteligência moderado pelo esforço da seriedade da paciência, conduzindo uma atividade acercada de sacrifício e renuncia, alcança uma economia dos sentidos na qual a transfiguração do pensamento é de tal maneira, que distinto de um esoterismo e um personalismo, permite a invenção de por um lado, uma cultura filosófica da arte, e por outro, uma ciência que encontre seu lugar no mundo das artes de acordo com as tradições de pensamento.

O deciframento que nos permite o exercício da tradução opera em tal nível de significação que essa decodificação simbólica permite uma reinvenção no plano da linguagem sociológica no atuar no campo artístico, partindo primeiramente da elasticidade das categorias para ao longe da ilusão conceitual que ordena as análises dos símbolos e signos poéticos e literários de então.

A estética, num sentido posto entre a linguagem e a função, se consolida numa questão de crítica do valor ou da obra, onde a imagem poética essa insígnia da ideia, esse rebento da criação difere-se em tudo do esnobismo metafórico e caracteriza-se na mais fina descrição da elegância. Esse refinamento conduz o crítico entre os juízos comuns e a mais sofisticada distinção, que busca pela particularidade da diferença, ou seja, pela peculiaridade e não pela imitação o reconhecimento de uma arte francamente de bom tom.

Essa “ratio”, que se aproxima da revelação através de um anuncio de possíveis discursos e suas origens intermediam a interpretação. A força intelectual empregada opera um jogo entre tradições, ideologias e contra-ideologias, bem como entre a cultura, a sabedoria e uma consciência da mudança e do valor de renovação das rupturas frente às conservações e regularidades.


A crítica se rebela ante a domesticação da linguagem. Também as formas dogmáticas do conhecimento literário como os manuais e outros, sofrem com a contracultura operada pela crítica para a renovação dos sentidos. Ao mesmo tempo, que a tradução por sua vez realiza uma ação (re)criadora e de decodificação cultural. Esse deciframento do espírito assegura a liberdade da experiência.