segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O sociólogo e a "solidão do porco espinho" – A hermeneutica do autor.




A Sociologia é uma ciência incompleta, uma atividade provisória. Através da recolha de epistemologias dispersas e métodos múltiplos, o sociólogo empreende uma ação intelectual de montador e ao mesmo tempo arquiteto das estruturas sociais com a digna sensibilidade de um organizador dos fenômenos sociais.

A capacidade de articular uma redação da realidade é crucial para apresentar, não raro, uma visão que tende a totalidade ainda que na dimensão objetiva do texto constata-se, por vezes, parcial e insuficiente para comportar as contingências do mundo social. O que faz da obra sociológica um trabalho intelectual, por excelência, e como tal aberto a interpretações denotando assim o poder da autoridade do autor, ou seja, do sociólogo. Uma dicção por vezes fragmentada, o uso de construções por vezes repetitivas, a retomada de certos temas são mostra de como aparecem as contradições inerentes ao pensamento social.

A busca por uma análise integral da sociedade assombra a maior parte dos intelectuais, e não apenas sociólogos, os quais esbarram na estratégia da analise diferencial ou comparada, seja por termos ou temas, campos de estudo ou área de conhecimento. Ao passo que a permanência de aspectos sociais fundantes da era moderna, principalmente do pós-século 19, acompanham boa parte destes estudos e reflexões que se preocupam com as mudanças operadas com a soberania da racionalidade – instrumental e administrativa – e da técnica no mundo que vivemos.

Interessa-me o debate que recai sobre as intenções do sociólogo enquanto um autor. A experiência territorial em uma nova localidade, a influência de outros intelectuais e suas obras sobre seu próprio pensamento influenciam assim no tratamento da problemática em desenvolvimento. Considero o exílio como ponto importante e diferencial na produção do conhecimento sociológico, juntamente com as bibliografias e a biblioteca enquanto arsenal, mas que ao mesmo tempo não esgotam a atividade empírica.

Nesse sentido, pensando a sociologia contemporânea enquanto “contracultura da modernidade”, não se pode negar um caráter duplex na atividade intelectual sociológica. O sociólogo, ao viver o estado da solidão do porco espinho, exige a emergência de uma epistemologia dos pontos de vista, uma certa espécie de perspectivismo[1]. A lógica posta, a partir do princípio da identidade de Parmênides – o ser é, o não ser não é – orienta as relações sociais fundamentadas na modernidade: ou seja, o ser – conhecer – que sustenta-se na ontologia do reconhecimento, como posto por Charles Taylor, indica um caminho em direção a  uma epistemologia que leve em conta a universalidade, apresentando assim uma das senão a maior das antinomias da Modernidade onde a experiência social necessita de uma perspectiva relacional, como pode ser observada nas questões que envolvem o tema da identidade multicultural.

Paul Gilroy, ao investigar os desdobramentos da diáspora via Atlântico negro, aponta fenômenos como desterritorialização, desenraizamento, multiterritorialidade. Daí surgem questões como: o hibridismo e a circularidade. Além da diversidade cultural, da desigualdade de poder entre os grupos sociais etnicamente distintos, o recrudescimento de problemas sociais específicos como estes são resultado do enfrentamento (imposição) de um ponto de vista oficial, do colonizador ou hegemônico/dominante frente ao ponto de vista do colonizado ou outsider/marginal. Logo, a configuração do imaginário sociológico contemporâneo não pode prescindir da constatação de que a barbárie está contida na civilização.

Assim, no exercício sociológico de leitura, construção e interpretação das vanguardas anímicas da cultura negra no Nordeste brasileiro, as relações entre a cidadania, cultura e as formas sócio-culturais do maracatu nação e do samba de roda do recôncavo baiano se articulam em torno de uma tensa atividade empírica que permite a emergência de uma narrativa teórica e metodologicamente orientada pelo princípio de uma voz a um só tempo xamanica e científica, crítica e oracular.

A noção de vanguarda aparece aqui diretamente ligada ao sentido de contra-hegemonia política e ideológica ao sistema capitalista; as forças sociais mobilizadas por estas manifestações culturais evocam um poder ancestral e mítico, ao mesmo tempo em que provocam uma série de questionamentos a ordem dominante seja no plano econômico, artístico ou social.

As conexões entre a história do maracatu e do samba de roda são estabelecidas com base em noções como a de patrimônio cultural, que entre outras, colaboram para o debate entre conceitos e categorias de distinção entre a dita cultura popular e seu reconhecimento. Com vistas a uma visão crítica da antropologia, Adam Kuper sugere novas interpretações sobre o debate multiculturalista juntamente com os avanços na teoria social desenvolvidos na Escola de Birmingham de Estudos Culturais.

A música, enquanto elemento artístico oferece uma paisagem estética na qual se pode observar a emancipação de discursos como a liberdade, a descrição do mundo do trabalho, as formas da linguagem destes grupos sociais em análise, bem como identificar questões sociais como o tema da raça e do racismo, num atrelamento entre forma e conteúdo da arte, sempre tão complexa, em diálogo com seu público sempre tão heteróclito.

De tal maneira, assim apresentada a elaboração que se constrói, que a sociologia em face de suas transformações é chamada a redefinição dos pontos chave para a montagem e compreensão da agenda da modernidade. As novas formas de fazer ciências sociais advindas do impacto causado no campo, pelos Estudos Culturais, são sinais, na era moderna, da percuciência da radicalização das contradições sociais, ou seja, de suas próprias contradições.

Com isso é preciso, antes de apresentar uma visão em ciências sociais, considerar que o fazer sociológico foi influenciado pelo impacto que teve a escola de Birmingham no ramo dos estudos da cultura. O que quer dizer que no entendimento do pensamento social se realiza dentro de certos cursos ou programas e orientações de ordens ideológicas, com o aprofundamento da decadência da modernidade surgiram no seio de alguns institutos certa resistência a alguns movimentos de projetos intelectuais pós-1960.

Um profundo esforço para a desconstrução das contradições sociais do presente moderno e para rupturas com as tradições intelectuais encaminharam as Ciências Sociais e as Letras, em especial a Crítica Literária, para um novo conjunto de práticas hermenêuticas capaz de atribuir outros sentidos e significados a velhas teorias.

E reinterpretar a luz de novas questões os persistentes problemas da sociedade moderna marcada pela diversidade cultural e desigualdade das relações de poder entre os diversos grupos étnicos e sociais que compõem as estruturas sociais e se emancipam no panorama sócio-histórico a partir do maio de 68, principalmente, os negros, os gays e as mulheres.

Nesse contexto, categorias como raça ou gênero ganharam destaque e relevância para o trabalho intelectual como chaves de sentido para interpretar situações sociais problemáticas ou em crise. É claro que, enquanto isso acontecia, na sociologia, muitos pensadores produziram obras vultuosas nesse período que visavam, enquanto proposta intelectual, a síntese dos Clássicos. Ao passo que outros se posicionavam bem a direita ou bem a esquerda nos debates políticos acadêmicos (enquanto essas noções representavam alguma coisa no mundo crítico)[2]. Só que outros diferentemente destes, optaram pela ruptura com a reprodução, colocando frente a esta tradição erigida com a ideologia da modernidade o pensamento social que buscou colaborar com a constituição do entendimento desta era conhecida como “trágica”.

É possível que seja ainda mesmo hoje temerário apontar que essa sociologia da síntese, que encontra seu melhor expediente nos trabalhos realizados por Pierre Bourdieu, não passava de uma boa reciclagem ou releituras sofisticadas que por aplicação teórica ou alguma espécie de rigor ao método empregado permitiu uma particular fidelidade epistemológica a algumas das correntes de pensamento que as antecedem.

Nesse momento quero anotar que, a reflexividade, dada como característica intrínseca da Modernidade, por autores como Antony Giddens, pode ser exemplificada sob a forma da estratégia interpretativa da hermenêutica. Recuperando a noção de “excesso de significação” de Paul Ricouer, pode-se dizer que na sociologia contemporânea há um traço ou um suporte de elementos caros a fundação das ciências sociais, em especial, como na noção de “fato social total”, que remete ao conceito de “fato social” de Emile Durkheim, bem como outros exemplos. A teoria social contemporânea é uma co-extensão da sociologia moderna, vista em nossa óptica enquanto uma tradição.

Logo, a noção de originalidade na linguagem sociológica é necessária neste instante histórico para a consideração da questão da autoria e da criação da escritura-científica, onde o moderno precede ao contemporâneo em formas metodológicas e epistemológicas, distinguindo-se em elementos peculiares quanto a teorias e objetos bem como na abordagem para tratá-los.

Concebo ser necessária o desenvolvimento de uma filologia do mundo social, ou seja, uma filologia sociológica, para que se possa observar com acuidade o jogo ente conserva e decadência da modernidade e com se dá a aplicação e aproximação de conceitos e categorias aos quais são atribuídos novos usos(aplicações) bem como sentidos (significados) além de levar em conta estes processos de desenho de uma gramática e semântica dos conceitos como instrumento para identificar o continnun entre: Modernidade, Tradição Sociológica, Sociologia Moderna e Contemporânea.






[1] Ver a aplicação desta inversão de ponto de vista da lógica ocidental para o ponto de vista dos nativos da América amazônica operada pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiro de Castro. (2013)
[2] Durante a Guerra Fria, ser ou não ser a favor da guerra noVietnã, ser comunista ou capitalista, por exemplo.