O cinema e as Ciências Sociais
se encontram neste documentário enquanto uma maneira de elaborar uma
apresentação das formas da Cultura tradicional do nordeste brasileiro e do
oeste africano a partir das práticas de reconhecimento das formas da
colonização e descolonização numa relação dialética entre o Ocidente e o mundo
não-Ocidental. Demonstrando formas de afrocentrismo contra o eurocentrismo,
nesta crítica sociológica da ideia de raça tão comum a antropologia colonial
clássica, através da identificação de vários elementos desde a alimentação, a vestimenta,
a performance, as crenças (elementos da cultura nacional, no Estado-Nação do
Brasil e no Benin).
O cinema, assim como livros,
fotografias encarnam meios de representações e narrativas que contam uma
história. No nosso caso, o filme sobre o fotografo francês narrado por Gilberto
Gil com base em seu “diário de campo”, cantando com sua a voz as palavras do
próprio Verger. Encontramos aí uma narrativa sociológica de um diário que
constrói a imagem de um babalaô – Pierre “Fatumbi” Verger.
Em Salvador e sua nostalgia, o
encanto ritual pela cultura afro-ameríndia brasileira, luso tropical. A partir
de 1946, quando vem à Bahia pela primeira vez e escreve, a Bahia tinha um
“charme”. Os sobrados coloniais para as lentes da rolleiflex, imersa num estado
de boêmia e relações sociais com terreiros de candomblé, o Opô Afonjá,
principalmente, e figuras da vida baiana como Jorge Amado, Carybé,
Mãe Senhora de Oxum, entre outros. O xangô de Fatumbi estava no seu Odu: “tudo
é o odu da gente, a gente num foge dele”.
O encontro com as entidades
espirituais, os voduns, os orixás, os “encantados em fragmentos da natureza” que
compõem o mundo do candomblé e os poderes mágicos da religião e sua capacidade
em manter identidade e fé, ou seja, seu poder de eficácia simbólica. Nessa
busca pela compreensão dos orixás, Verger vai à África, mais especificamente ao
Benin, no Reino do povo Ketu, ao tornar-se filho de santo na Bahia, com a
cabeça consagrada a Xângo, por Mãe Senhora.
Toma-se conhecimento de tudo
isso através do seu diário “de campo”, sua verve antropológica, etnográfica,
etnológica e fotográfica, se mesclava a sua veia espiritual e metafísica em
regime de transfiguração étnica e cultural em direção ao ethos daqueles oriundos dos descendentes de Alaketu. Vê-se no filme
o cotidiano de um “habitus”
afro-brasileiro incorporado no homem de santo que agora depois de feito o borí,
vestia seu colar vermelho e branco de xângo.
Gilberto Gil corre os
continentes, entre América, Europa e África pra reconstruir essa trajetória.
Através da música, dança, imagens e principalmente a religião afrobrasileria.
As descrições sobre as relações de Verger com a cultura negra seja no Brasil ou
no Benin é tudo interpretado e apresentado por um ponto de vista etnográfico,
acerca dos aspectos de formas culturais não ocidentais.
A adivinhação pelo ifá, a
iniciação aos rituais, o tornar-se Fatumbi (“nascido de novo graças ao ifá”)
como se tornou Verger, um africano em “corpo” europeu, como uma “dupla
consciência” na acepção dada por P. Gilroy na sua noção de Atlântico Negro. Nesse
sentido, o filme nos apresenta uma África lírica e uma descrição de um ethos cosmopolita e móvel de um cidadão ocidental
no mundo negro da religião afro brasileira em regimes de aproximação e
distanciamento com o pathos africano
nativo, do oeste, cultivado pelo povo de Ketu.
O axé é tomado e apresentado no
filme, em vários momentos, como o elo dado sob o mar que alinha as forças
espirituais e sócio-culturais, mística e religiosa, metafísica e ontológica da
natureza e suas forças com a dinâmica humana no capitalismo da modernidade
ocidental. Assim, o trânsito, o tráfego, não só de suas imagens os continentes,
mas também a “transfiguração étnica” entre os costumes e crenças, a mobilização
de conhecimento da África negra por um francês é uma mostra do lugar da magia,
do ritual, através de uma sócio-antropologia visual, cultural e simbólica para
a compreensão do fenômeno da continuidade histórica entre África e o Brasil.
Destaca-se a bibliografia de
Verger, inclusive sobre a chegada dos povos africanos ao Brasil, como
encadeamento histórico das guerras entre os povos Yorubás (Nagôs) com os Fon do
reino de Abomei e em seguida dos Fon com o povo Ketu, organizando a cadeia
escravista na sucessão dessas guerras tribais onde os derrotados eram vendidos
aos europeus para o tráfico, em sua forma mercantilista, racional e econômica
de um comércio com Cuba, Haiti e o Brasil principalmente. Verger indica também
que a escravidão cumpriu um papel de estabelecimento dos “Estados” que foram se
formando a partir destes povos. Entre postos, portos, a importância da figura
dos traficantes de escravos como Francisco Félix de Souza, o baiano Xaxá, como
exemplo; além do retorno de africanos, ex-brasileiros para o Benin, como pode
ser observado também em “A Rota do Orixás”, são elementos para uma discussão proposta
pelo documentário, Pierre Verger Mensageiro entre Dois Mundos, de Luís Buarque
de Holanda, que com trilha sonora de Naná Vasconcelos nos transporta pela
travessia franco-afro-tropical.

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